Por Osvaldo Valente
Postei,
no Blog Literatura em Migalhas, dois pequenos textos sobre dois livros
infanto-juvenis clássicos. Neles, Ferenc Molnár e Louis Pergaud exploram o mundo
dos meninos e sua incerteza a respeito do mundo dos adultos. Ambos são obras literárias
muito boas que tratam do amadurecimento que está logo ali, um pouco mais
adiante na vida de alguns meninos que se dedicam a combates com grupos rivais.
Defendem seus espaços e suas honras com exércitos fictícios e armas com
reduzidíssimo poder letal.
Os
livros são bem diferentes de Peter Pan, de James Barrie. Neste os meninos
perdidos, liderados por um garoto que mais parece uma entidade da floresta,
negam o amadurecimento. Naqueles, em um mundo sem mágica, o amadurecimento os
espreita e suas brincadeiras e aventuras são parte dele.
Lendo
um capítulo do livro Ébano: minha vida na África, do jornalista polonês Ryszard
Kapuscinski, lembrei daqueles meninos húngaros e franceses, e de Peter Pan e
sua idílica Terra do Nunca.
No
capítulo intitulado “A emboscada”, ele aborda a participação das crianças nas
guerras africanas. A primeira diferença a notar é que aqui a guerra não é uma
brincadeira. E nem um fenômeno recente, pois na África “crianças matam crianças
em grande número, e isso ocorre há anos. Há muitos anos”. E lembra: “ Na verdade, as guerras contemporâneas neste
continente são entre crianças”. Esta última afirmação é retomada em algumas
outras passagens do livro que tratam de conflitos armados.
Onde
foram parar os adultos, ou os jovens adultos que deveria fazer a guerra? A
resposta de Kapuscinski é de uma simplicidade atroz: “... a maioria dos adultos
já morreu há muito tempo, lutando contra a fome ou uma epidemia”, o que leva a
uma consequência inevitável: “restaram apenas as crianças, e são elas que
continuam a lutar”.
O
círculo é vicioso. Em função dos conflitos sangrentos, surgiram no continente
dezenas de milhares de órfãos, sem lar e famintos. E qual a consequência disto?
“A
forma mais fácil de encontrar algo para comer é procurar onde estão os
soldados. São eles que têm maiores chances de obter comida, pois nestes países
as armas não são apenas instrumento de guerra, mas também um meio de
sobrevivência – às vezes o único existente”.
Para
aqueles que conseguem ser aceitos pelo exército há uma mudança de posição:
deixam de ser crianças sem rumo e passam a ser “filhos do batalhão”. Como tais,
recebem armas e logo passarão por um batismo de fogo: “como os colegas mais
velhos (crianças também!) às vezes resistem a combater o inimigo, enviam para
linha de frente, para substituí-los, as crianças menores”.
E
aqui o círculo vicioso dá mais uma volta. Ele explica a crueldade das batalhas
travadas por crianças:
“As
batalhas entre crianças são extremamente encarniçadas e cruéis, pois uma
criança ainda não desenvolveu o instinto de autopreservação, não se dá conta da
morte e desconhece o medo, que só experimentará com a maturidade”.
Finalmente,
a tecnologia das armas tem o seu papel neste círculo e o fecha. Como observa o
jornalista polonês, “as metralhadoras [hoje] são mais leves e curtas, e as
versões mais modernas se parecem com brinquedos infantis”. Crianças não
conseguiria manusear as antigas armas longas e pesadas, mas as mais novas
parecem ser feias para sua utilização pois “suas dimensões são adequadas para o
porte físico de uma criança” e chegam a parecer ridículas quando portadas por
adultos corpulentos.
Quando
todas essas condições se juntam temos como resultado as guerras travadas por
crianças, descritas da seguinte forma por Kapuscinski:
“O
fato de uma criança só poder manejar armas de fogo portáteis e de curta distância
de tiro (elas não têm condições de disparar um canhão ou pilotar um
bombardeiro) faz que os combates entre crianças sejam de contato direto,
praticamente corpo a corpo, e que elas atirem umas nas outras à queima-roupa. A
carnificina daí resultante é, em geral, aterradora, pois não morrem apenas
aqueles em campo de combate. Nas condições em que essas guerras são travadas,
morrem também os feridos – de hemorragia, infecções ou por falta de remédios”.
Por
“condições em que essas guerras são travadas” Kapuscinski quer dizer a miséria
dos países em guerra.
Assim,
ao contrário dos “exércitos” dos meninos de Molnár e de Pergaud, fazer a guerra
para os “filhos do batalhão” não é uma atividade que ajudará no processo de
amadurecimento. Este, na verdade, nunca virá. Em um mundo sem mágica, esta é a
Terra do Nunca.
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