sexta-feira, 12 de junho de 2015

O Fruto Sangrento de uma Árvore Diabólica: Ruanda, 1994.

Por Osvaldo Valente




No livro Ébano: minha vida na África, Ryszard Kapuscinski reproduz uma palestra que proferiu sobre Ruanda ou, mais precisamente, sobre o massacre que ocorre naquele país em 1994. Num mundo em que tudo é consumido e digerido com extrema rapidez e esquecido no mesmo ritmo, talvez possa parecer estranho voltar a algo já tão “velho”, tão antigo. Pessoalmente acho que vale o esforço na medida mesmo em que há uma lição permanente naquele episódio. É sobre essa lição que trata este texto.

A sequência de acontecimentos que levam ao massacre deve ser lembrada. Ela começa com a própria independência do país. Até a década de 1960, Ruanda era uma colônia belga. Os belgas tinham nos tútsis seus aliados na tarefa de manter seu domínio na região. Com o acelerado processo de independência por que passava toda a África, os tútsis passam de aliados a adversários, pois, se houvesse a independência, ela seria capitaneada pela casta dominante. Assim, com seus interesses prestes a serem contrariados, o governo belga resolve refazer sua aliança e passa a incitar os hutus contra os tútsis. É por essa razão que apenas Ruanda combina um duplo processo: fim da colonização e revolução social. Revolução sangrenta. Dezenas de milhares de tútsis são massacrados. Outros tantos fogem e passam a viver em campos de refugiados em países vizinhos. Há ainda os que permanecem no país agora sob controle hutu.
A vitória é acompanhada pelo medo do vencedor. Como lembra o jornalista polonês: “não se pode esquecer que o medo da vingança está enraizado na mentalidade africana e que o direito secular de se vingar sempre regeu as relações entre as pessoas e os clãs”. E os que desejavam vingança estavam logo ali, bem ao lado. Muitos participaram como soldados voluntários em guerras que não lhes diziam respeito. Receberam treinamento e aprenderam o que desejavam (a fazer a guerra, a arte do combate), além de terem obtido outra coisa que lhes faltava: armas. Esses são os que dão origem a Frente Patriótica Ruandesa, que em 1990 invade o território de Ruanda e tem por objetivo restabelecer o controle tútsi sobre o país.
Com apoio francês, o então presidente Habyarimana consegue parar o avanço das tropas tútsis. Mas não consegue expulsá-la do país. É neste cenário de guerra suspensa por quatro anos, de tensão crescente sem nenhuma perspectiva de negociação, que vai ser plantada a árvore que terá como fruto o genocídio de 1994. Não vou tratar aqui do lado “intelectual” da árvore, da justificativa ideológica mais radical que não aceitava a negociação com a Frente Patriótica Ruandesa. O mais importante é fruto social da árvore, é ele que revela a irresponsabilidade dos governantes radicais:
“Os maiores esforços, porém, dirigem-se à formação de uma organização paramilitar de massa, a Interahamwe (Juntos Atacaremos). É na Interahamwe que milhares de pessoas provenientes dos vilarejos e cidadezinhas, jovens desempregados, camponeses pobres, alunos em idade escolar, estudantes universitários e funcionários públicos, recebem treinamento militar e ideológico. Formam uma imensa multidão, um movimento popular cuja função é promover o apocalipse”.
O documentário Shake Hands with the Devil [História de um massacre] (2007), mostra cenas em que pode-se ver o tipo de treinamento acima descrito. Tudo parece um tanto patético, pois as armas que são utilizadas nos treinamentos são de madeira e parecem bastante inofensivas.
Quando o presidente do país morre em consequência de ataque a seu avião, a senha para o massacre estava dada. O alvo escolhido não foram apenas os membros da casta tutsi, como comumente se pensa. Além deles todos os que faziam oposição ao regime (que não aceitavam a ridícula fantasia montada por seus ideólogos, por exemplo) também eram alvos, o que quer dizer que hutus que se opunham ao governo também foram massacrados.
Estima-se que entre meio milhão e 1 milhão de pessoas foram assassinadas sistematicamente ao longo de inacreditáveis três meses. Aceita-se hoje o número de 800 mil ruandeses mortos. Mortos por forças estatais, com tiros de metralhadora e até de tanques. Mas a grande maioria foi assassinada por armas primitivas, como faz questão de lembrar Kapuscinski: machetes, martelos, lanças e bastões. Ou seja, não foi fruto da ação de tropas regulares, mas de civis. E é aqui que aqueles aparentemente inofensivos e ridículos rifles de madeira mostram para que serviam: se a Interahamwe não armou ninguém, ela serviu para lhes motivar, dizer para os civis e lhes ensinar o que deveriam fazer.
E cito o jornalista polonês: “a intenção dos líderes do regime não era somente atingir o objetivo, a solução final. Para eles, também era importante a forma pela qual esse objetivo devia ser alcançado. Pretendiam que (...) houvesse uma comunhão de culpabilidade entre toda nação”. E. mais adiante complemente: “Desse modo, os crimes ficariam caracterizados como um movimento de massas, como uma intervenção francamente popular, na qual toda nação teria se envolvido. Não haveria uma só mão que não estivesse banhada no sangue daqueles que o regime considerara inimigos”.
O desfecho da guerra é conhecido por todos. A Frente Patriótica Ruandesa ganhou a guerra e tomou poder. O Estado é agora controlado pelos tútsis. É curioso, porque contraditório, que a casta que mais foi massacrada (os tútsis) tenham sido os vencedores; que ao final, tenham sidos os hutus que tiveram que deixar seu país e ir viver em campos de refugiados. A explicação é que a guerra foi travada entre tropas de exércitos regulares, por assim dizer, mas o massacre aconteceu ao nível da rua, da vizinhança. Perdida a guerra convencional, só restou aos que massacraram fugir.
Por que tiveram que fugir? Por que paira sobre cada civil hutu que participou do massacre o direito irrevogável de vingança daquele que teve um parente ou um amigo assassinado nos trágicos três meses que marcaram Ruanda para sempre. A árvore do envolvimento de civis em disputas políticas armadas deixou um fruto sangrento. Essa é a lição permanente do que aconteceu em Ruanda em 1994.

Menino contempla um campo de refugiados de Ruanda


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