quinta-feira, 9 de abril de 2015

Números e Mitos

Por Osvaldo Valente


O debate acerca da diminuição da maioridade penal ficou bastante acalorado nos últimos dias. No dia 31 de março, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou – com 42 votos a favor e 17 contra – o voto em separado do deputado Marcos Rogério (PDT-RO), favorável à admissibilidade da PEC 171/93, que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos. A repercussão foi enorme. O caminho até a eventual aprovação da alteração na Constituição é ainda longo e, pelo que já se vê, complicado. O momento é de debate e assim deve sê-lo.
Como “sigo” a página pessoal da antropóloga Alba Zaluar no Facebook, vi que ela compartilhou um artigo da jornalista Eliane Brum para a edição brasileira do jornal El País, escrita um dia antes da aprovação pela CCJ da Câmara dos Deputados da admissibilidade da já referida PEC. O título do artigo não poderia deixar de ser mais claro: “Para Brasília, só com passaporte”.

Não concordei, quando o li, com o tom de reprimenda que o atravessa – não vou tratar disso aqui. Mas, não pude deixar de notar os números bastante significativos que a jornalista cita como suporte para sua enfática rejeição do conteúdo da PEC.
Diz ela: “Segundo o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), dos 21 milhões de adolescentes brasileiros, apenas 0,013% cometeu atos contra a vida. Mas são eles que estão sendo assassinados sistematicamente: o Brasil é o segundo país no mundo em número absoluto de homicídios de adolescentes, atrás apenas da Nigéria. Hoje, os homicídios já representam 36,5% das causas de morte por fatores externos de adolescentes no país, enquanto para a população total corresponde a 4,8%. Mais de 33 mil brasileiros de 12 a 18 anos foram assassinados entre 2006 e 2012. Se as condições atuais prevalecerem, afirma o Unicef, até 2019 outros 42 mil serão assassinados no Brasil".
Os números apresentados apontam para um descompasso muito grande. Estaríamos, como sociedade, cometendo um genocídio que tem como vítima nossos adolescentes – bem entendido, de nossos adolescentes negros e pobres.
O problema com os números é que para se chegar a eles é necessário um caminho muito longo, repleto de escolhas francamente arbitrárias e que deve ser feito com muito cuidado pois há muitas armadilhas no caminho. O mesmo vale para sua utilização. Qualquer pesquisador sabe que quando a discrepância é muito grande, deve-se verificar a construção dos números disponíveis.
Havia guardado meu pasmo com as estatísticas apresentadas pela jornalista até que hoje me deparei com um excelente artigo do escritor/jornalista Leandro Narloch que, polêmico, tem como alvo justamente os números apresentados não apenas pela jornalista aqui citada (citada porque foi o que eventualmente li), mas pela imprensa em geral. O título de seu artigo também não deixa dúvidas: “Mito: ‘osadolescentes cometem menos de 1% dos homicídios do Brasil e são 36% das vítimas’”.
Desconfiado com tamanha discrepância, o jornalista fez o dever-de-casa: foi atrás das fontes. A descoberta que fez foi desconcertante: a pesquisa que teria dado tal resultado simplesmente não existe, é um fantasma visto por todos, mas nunca fotografado por ninguém.
E o jornalista indica sua origem: “Na verdade, uma estatística parecida até existiu há mais de uma década. Em 2004, um pesquisador da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo lançou um estudo afirmando que menores de idade eram responsáveis por 0,97% dos homicídios e 1,5% dos roubos. Foi assim que nasceu a lenda do 1% de crimes cometidos por adolescentes”.
Qual o problema aqui? O problema aqui é, como disse antes, o cuidado que se deve ter quando se produz números. Eis o erro, segundo Narloch: “Mas a pesquisa de 2004 tropeçou num erro graúdo. Ao calcular a porcentagem, os técnicos dividiram o número de menores presos por homicídio pelo total de homicídios no estado. Sem ligar para o fato de que em 90% dos assassinatos a identidade dos agressores não é revelada, pois a polícia não consegue esclarecer os crimes”.
Claro que isso não resolve a questão de se saber se a diminuição da maioridade penal é um bom caminho ou se é um caminho para o controle da criminalidade violenta. Mas, como disse antes, o momento é de debate, de argumentação. Não tenho uma posição formada sobre a questão, por isso meu interesse no debate.  Se Narloch estiver correto, os argumentos estatísticos que ele critica devem ser, para a correção e lisura do diálogo, abandonados. Números falsos não ajudam em nada. Apenas distorcem o que deve ser um debate limpo para se chegar a uma posição e decisão que se pretenda justa.  

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